Ideias desarrumadas, arrumadas ou por desarrumar...
"escrever é arrumar as ideias"

Fernando Pessoa

Divagações Literárias

 Polaroid Park # 1
Acordou desgrenhada como habitualmente. A sensação de sede e a pele seca denunciavam a noite da véspera. Dançar até cair…
As suas costas doíam…a sua energia habitual muitas vezes era traída pelo peso dos tinta anos.
Levantou-se, espreguiçou-se tal qual um gato, fazendo esticar as articulações e enrolou-se no cobertor amarelo para enganar o frio que se fazia sentir, enquanto deambulava pelo quarto …nunca gostou de pijamas nem de roupa de dormir, por isso mesmo no inverno dormia só de meias e roupa interior, por vezes mesmo completamente nua. Nada como uns lençóis de flanela acabadinhos de lavar e um saco de água quente para lhe fazer companhia.
Escolheu umas cuecas pretas, daquelas simples e sem costuras iguais a umas tantas outras que possuía e um sutiã confortável de algodão porque sempre fora alérgica a tecidos de nylon e por isso preferia sempre o algodão e os cortes simples, calças de ganga, uma t-shirt branca básica e uma camisola de preta de lã e decote em v que Filipa sabia que a favorecia. Pegou nesse rol de adereços e colocou-os em cima do toalheiro da casa de banho. Ligou o aquecedor, colocou as toalhas a aquecer num montinho no chão em frente ao calorífero, dobrou o cobertor amarelo, arrumou-o no armário e correu em cuecas e descalça a ligar o esquentador.
Era assim a sua rotina quase todas as manhãs.
Aproveitava o duche para arrumar ideias…muitas vezes dava por si a magicar que no ritual do banho era um dos momentos em que mais pensava, talvez ainda mais do que quando conduzia. Deveria dar mais atenção ao cerimonial de tomar banho em si tentar e não pensar tanto, mas muitas vezes não conseguia evitar, era como se estivesse a lavar e deixar ir pelo cano uma série de pensamentos que a assolavam.
Às vezes sem dar conta demorava mais tempo do que devia nas suas divagações higiénicas e depois acabava por andar a correr para não chegar tarde ao trabalho, ao cinema, ao almoço em casa dos pais ou de alguém.
Aquele dia não foi excepção. Depois do seu confortável duche e do creme para o corpo e pó de talco nos pés, vestiu calmamente a sua roupa interior… sentiu-se sexy - não tenho andado a comer nada de jeito, pensou, mas em compensação aquela bochechinha aqui de lado ficou mais pequena.
A rádio passava um programa do Nuno Markl que a fez soltar uma sonora gargalhada, substituída por correria quando a voz do animador disse: faltam vinte minutos para as nove…ui pensou…és sempre a mesma coisa miúda …deveria estar às nove horas e quinze nas Caldas para dar aulas.
Ao fim da manhã engoliu um iogurte e um croissant com queijo e dirigiu-se para o carro para mais uma viagem de regresso a Leiria. Ainda a esperava uma tarde de muito trabalho.
Por volta das 18hoo o telefone tocou: Now heres the Sun it’s alrigth…tocavam os Arcade Fire no seu telemóvel…
Mana? Sim diz! - Ao cinema logo? Sim pode ser mais só saio às nove. Ok. Vou-te buscar. Até logo.
Porque saía às nove e ainda foi buscar a irmã, falharam por minutos o “Estranho Caso de Benjamim Button ” que era o motivo que as levava ao cinema. Acabaram por assistir ao Contrato, um filme português realizado pelo Nicolau Bryner.
-Nada mal para um filme português. Estamos seguramente a melhorar, já há dias quando fui ver o Amália com a mãe achei que estava muito bem produzido.
Contrato contava a história de um mafioso contratado para matar que nunca deixava um contrato a meio e que se apaixonou pela enfermeira que o tratou e que afinal não passava de uma infiltrada de uma organização rival. Nada de novo.
Quando depois de um bocado à conversa foi levar Mariana a casa, antes de sair perguntou-lhe: Estás bem?
Filipa respondeu-lhe com um sorriso pouco esclarecedor: Até amanhã!
Estava cansada. Era bom estar ocupada mas por vezes não parava um segundo.
Chegou a casa, meteu as chaves à porta num ritual já quase inconsciente, despiu-se enrolou-se no cobertor amarelo e ficou ainda a ler um bocadinho da Musica do Acaso do Paul Auster até adormecer.


Polaroid Park # II
A manhã do Domingo seguinte trouxe consigo um manto branco que cobriu toda a cidade. Que bonito…
Sempre lhe agradaram aqueles dias de muita luz e muito frio com sol. Nada de ficar a dormir até tarde.
Vestiu o casaco preto de fazenda grosso, artilhou-se de gorro e cachecol. Respirou fundo sorriu para o espelho, pegou na máquina fotográfica e saiu bem-disposta a cantarolar Another Sunny Day dos Bell and Sebastian enquanto descia pelas escadas.
O vizinho do terceiro andar meteu-se com ela…a descer a pé do quinto andar logo de manhã? Aproveite! Quando for da minha idade até para o primeiro já lhe saberá bem o elevador.
Passava o dia todo sentada, ou quase todo. Já não ia a pé para o trabalho como antes. Se não fossem as escadas e o yoga que fazia às terças e às quintas, quando não se baldava, não fazia exercício nenhum e sentia falta disso. Sempre achou que o exercício era fundamental não só para a sua saúde física mas também mental.
Quando trabalhava na biblioteca ia muitas vezes a pé para o trabalho, passeava a pé na cidade à hora do almoço, e às vezes ainda ia caminhar à noite quando se despachava cedo.
A serra estava linda!
Que bem que se sentia a respirar aquele cheiro a frio, a terra e a verde. Sempre gostara muito de serras, não sabia explicar porquê mas era frequente quando precisava de arejar, de arrumar ideias ou simplesmente de ficar sozinha para pensar, ir ali para os lados da Barreira, olhar para a Senhora do Monte e para as marcas profundas entre as ondulações montanhosas.
Lembrou-se de um dos dias mais tristes da sua vida, um dos mais ansiosamente dantescos de que tinha memória. Foi no verão de 2004 no dia em que fazia vinte e seis anos. Preparava-se para ir de férias com a Mariana, o Rui e João para o sul de Espanha. Os seus pais não estavam em casa porque tinham ido passar o fim-de-semana fora, num daqueles passeios de atleta tão habituais no grupo de amigos do seu pai.
O calor era abrasador e a manhã daquele sábado trouxe consigo uma nuvem surreal de fumo negro. Tudo ardia à sua volta. A Curvachia estava a arder, as Cortes, a Sra. Do Monte, a Mata dos Marrazes…um cenário surreal e pavoroso O castelo de Leiria que tão bem se via da varanda de casa estava completamente escondido pelo denso nevoeiro provocado pelo fumo.
A dor de cabeça era atroadora devido ao calor. O Tucha, um gato persa branco, que era o bijú lá de casa nem se mexia esparramado contra o chão procurando em vão sorver um pouco de fresco.
Lembra-se de ter chorado convulsivamente por ver algumas das suas paisagens preferidas a desaparecer assim no meio das chamas. Uma ânsia terrível de deixar a casa sozinha e os animais para sair na madrugada seguinte. Sabia que os pais não tardariam mas tendo em conta aquele cenário bizarro, não se sentia nada confortável com a ideia.
Depois do almoço daquele que seria o mais triste de todos os seus aniversários, foram lá acima à Barreira, o tal local onde costumava ir quando lhe apetecia alguma tranquilidade para ver a serra a arder…o fumo intenso turvava-lhe a visão. Que angústia…Um pouco por todo o lado havia aglomerações de pessoas, de mirones, um pouco naquela velha tendência masoquista dos humanos que é a de ficar a contemplar as desgraças e encaixá-las num lugar de palmarés próprio: Eu vi tudo! Eu estava lá! Que desgraça! Num misto de excitação mórbida ao contar as peripécias a que tinham assistido.
Choviam telefonemas e mensagens de parabéns intercalados por “estás bem?” “ O fogo está perto?” “ A casa da Ana está a arder”,” os primos andam a ajudar a apagar o fogo…”
Nem quero lembrar-me disso pensou. Agora que já tinham passado uns anos e que o verde começava a substituir aquele cenário desolador, esperava não voltar a repetir tão grotesco episódio.
Fotografar a serra e a calçada romana num dia de frio com sol e com uma paisagem tão bonita de fundo tinham sido o pretexto para se tirar de casa. Desde que vivia sozinha, nem sempre lhe apetecia sair, ou passear. Era diferente estar por nossa conta ou fazer as coisas com companhia. Como em tudo, haviam coisas boas e coisas más neste seu novo estado. Mas o melhor de tudo era aproveitar os bons momentos e as coisas simples como se fossem únicas.
Tinha sido seguramente uma das mais sábias lições que tinha tirado da vivência destes últimos nove meses.
Desfrutar de cada um dos bons momentos que passava sozinha ou acompanhada pelos amigos, ou com Pessoas. Sabia que não gostava de todas as pessoas e às vezes chegava a ser presunçosa e selectiva na escolha das com quem estava, mas hoje um dos seus maiores prazeres era estar com pessoas genuínas, boas, que partilhavam os mesmos interesses e aquela mesma admiração pelos afectos.
Sempre dera muita importância aos afectos. Costumava dizer muitas vezes…sim sou complicada e depois? Dou valor a pequenos nadas, para o bem e para o mal…sim é verdade.
Sabia que para si o emocional era o mais importante, mas também sabia da sua terrível tendência para racionalizar tudo e muitas vezes reprimir as emoções.
Já tinha visitado aquela zona muitas vezes, nas suas caminhadas pela serra ou numa das tentativas de ocupar o domingo à tarde, ainda há pouco tempo tinha passado umas horas dentro do carro a ler e à conversa com a Mariana, a pretexto de ir ver o novo parque eólico, mas nunca tinha passeado a pé pela calçada romana. Engraçado como vamos tantas vezes fora, e não nos damos ao trabalho de conhecer o que está debaixo do nosso nariz.
O frio e humidade provocados pela vegetação estavam a saber-lhe bem e o sol vinha acariciar-lhe as faces.
Ao caminhar cumprimentou um atleta que por ali passava, ficou um bocadinho à conversa com um senhor de meia-idade que verificava a horta queimada pela geada antes da hora da missa e que se lamentava da neve que lhe tinha dado cabo da hortaliça. Pois…respondeu, mas pensou sempre foi assim… é como em tudo na vida, o regozijo de uns muitas vezes é o descontentamento de outros. O homem falava com um desânimo tal que quase se sentiu culpada por estar tão feliz com a beleza do dia.
Prosseguiu o seu caminho e deteve-se um bocadinho mais à frente para fotografar. Sempre gostou de fotografia, mas como nunca aprendeu nem sempre conseguia tirar partido da sua máquina. Era preciso tempo e paciência para a explorar e isso era uma coisa que ainda não conseguia controlar. Ainda assim era frequente andar de máquina em riste para os passeios ou para os concertos. É um tijolo mas não custa nada andar com ela na mochila, dizia.
Também tinha uma grande tendência para tirar fotos a pés. Um dia ainda pergunto a um psicólogo o que quererá isso dizer, alguma coisa deve significar…
Andou naquele passeio despreocupado até há hora do almoço, altura em que se dirigiu a casa dos pais para mais uma refeição de domingo.
Quando chegou o pai estava na frente da casa, debaixo da varanda virada para a estrada, sentado no degrau de cimento a engraxar os sapatos e a aproveitar o sol. Quando se lembrava da imagem do pai em casa, o que lhe vinha logo à memória era aquela “fotografia “ do pai debaixo da varanda no degrau de cimento a lavar as sapatilhas da corrida, ou a engraxar os sapatos ou a ler o jornal desportivo que comprava aos domingos e feriados ao sol. Era como se aquele fosse o local mais emblemático do patriarca da casa.
- Então? Está tudo em óptima? Perguntou.
-Sim e contigo? Estás ao sol?
-estou aqui e engraxar os sapatos da tua mãe, mas já fui fazer um treinozinho hoje. Os Saraivas foram para a Lousã mas eu não estava em forma e para a tua mãe não me azucrinar a cabeça fiquei cá este fim-de-semana. Mas estava mesmo desgastado hoje…
Filipa sorriu. Quase podia prever o que o pai iria dizer quando chegasse e foi exactamente assim que aconteceu.
-Olha, eu fui passear para a serra, tirar umas fotos, ler o jornal não penses que fiquei a dormir, hoje quis aproveitar bem o dia, porque à tarde já combinei um café e tenho aulas para preparar. A mana?
Sem ouvir a resposta dirigiu-se ao primeiro andar da vivenda em tijoleira onde tinha vivido toda a sua infância e adolescência até ter saído há três anos atrás.
Bom dia, mami!
Ena estamos bem-dispostos hoje disse a D. Esmeraldina com um sorriso. Folgo em te ver assim!
-A mana? Mas voltou costas e nem esperou pela resposta. Passou as portas de vai-vem para dar beijinho a Mariana que arrumava a mochila para mais uma semana de estudo em Lisboa ao som de Friends come and Go dos Dapunksportif.
"Do you know my name when you are not in pain?"

Acordou desgrenhada como habitualmente. A sensação de sede e a pele seca denunciavam a noite da véspera. Dançar até cair…
As suas costas doíam…a sua energia habitual muitas vezes era traída pelo peso dos tinta anos.
Levantou-se, espreguiçou-se tal qual um gato, fazendo esticar as articulações e enrolou-se no cobertor amarelo para enganar o frio que se fazia sentir, enquanto deambulava pelo quarto …nunca gostou de pijamas nem de roupa de dormir, por isso mesmo no inverno dormia só de meias e roupa interior, por vezes mesmo completamente nua. Nada como uns lençóis de flanela acabadinhos de lavar e um saco de água quente para lhe fazer companhia.
Escolheu umas cuecas pretas, daquelas simples e sem costuras iguais a umas tantas outras que possuía e um sutiã confortável de algodão porque sempre fora alérgica a tecidos de nylon e por isso preferia sempre o algodão e os cortes simples, calças de ganga, uma t-shirt branca básica e uma camisola de preta de lã e decote em v que Filipa sabia que a favorecia. Pegou nesse rol de adereços e colocou-os em cima do toalheiro da casa de banho. Ligou o aquecedor, colocou as toalhas a aquecer num montinho no chão em frente ao calorífero, dobrou o cobertor amarelo, arrumou-o no armário e correu em cuecas e descalça a ligar o esquentador.
Era assim a sua rotina quase todas as manhãs.
Aproveitava o duche para arrumar ideias…muitas vezes dava por si a magicar que no ritual do banho era um dos momentos em que mais pensava, talvez ainda mais do que quando conduzia. Deveria dar mais atenção ao cerimonial de tomar banho em si tentar e não pensar tanto, mas muitas vezes não conseguia evitar, era como se estivesse a lavar e deixar ir pelo cano uma série de pensamentos que a assolavam.
Às vezes sem dar conta demorava mais tempo do que devia nas suas divagações higiénicas e depois acabava por andar a correr para não chegar tarde ao trabalho, ao cinema, ao almoço em casa dos pais ou de alguém.
Aquele dia não foi excepção. Depois do seu confortável duche e do creme para o corpo e pó de talco nos pés, vestiu calmamente a sua roupa interior… sentiu-se sexy - não tenho andado a comer nada de jeito, pensou, mas em compensação aquela bochechinha aqui de lado ficou mais pequena.
A rádio passava um programa do Nuno Markl que a fez soltar uma sonora gargalhada, substituída por correria quando a voz do animador disse: faltam vinte minutos para as nove…ui pensou…és sempre a mesma coisa miúda …deveria estar às nove horas e quinze nas Caldas para dar aulas.
Ao fim da manhã engoliu um iogurte e um croissant com queijo e dirigiu-se para o carro para mais uma viagem de regresso a Leiria. Ainda a esperava uma tarde de muito trabalho.
Por volta das 18hoo o telefone tocou: Now heres the Sun it’s alrigth…tocavam os Arcade Fire no seu telemóvel…
Mana? Sim diz! - Ao cinema logo? Sim pode ser mais só saio às nove. Ok. Vou-te buscar. Até logo.
Porque saía às nove e ainda foi buscar a irmã, falharam por minutos o “Estranho Caso de Benjamim Button ” que era o motivo que as levava ao cinema. Acabaram por assistir ao Contrato, um filme português realizado pelo Nicolau Bryner.
-Nada mal para um filme português. Estamos seguramente a melhorar, já há dias quando fui ver o Amália com a mãe achei que estava muito bem produzido.
Contrato contava a história de um mafioso contratado para matar que nunca deixava um contrato a meio e que se apaixonou pela enfermeira que o tratou e que afinal não passava de uma infiltrada de uma organização rival. Nada de novo.
Quando depois de um bocado à conversa foi levar Mariana a casa, antes de sair perguntou-lhe: Estás bem?
Filipa respondeu-lhe com um sorriso pouco esclarecedor: Até amanhã!
Estava cansada. Era bom estar ocupada mas por vezes não parava um segundo.
Chegou a casa, meteu as chaves à porta num ritual já quase inconsciente, despiu-se enrolou-se no cobertor amarelo e ficou ainda a ler um bocadinho da Musica do Acaso do Paul Auster até adormecer.